Antes um defensor da reforma tributária, o economista Felipe Salto se converteu em um dos mais duros críticos da mudança dos impostos aprovada na Câmara nesta quinta (6/7) e que, após análise de destaques, segue ao Senado.
“A proposta original da reforma tributária, a PEC [Proposta de Emenda Constitucional] 45, tinha as bases corretas: a migração da tributação para o destino [isto é, para o local de consumo de um produto ou serviço], a não cumulatividade plena e a ideia de que haveria uma simplificação geral, com uniformidade de alíquota em todo o território nacional. Isso tudo era positivo”, enumera Salto.
“O problema é que o texto foi sendo modificado, de modo que acabou desfigurado.”
Pelo texto aprovado, cinco tributos que incidem sobre o consumo – PIS, Cofins, IPI (federais), ICMS (estadual) e ISS (municipal) – serão unificados em um IVA (Imposto sobre Valor Agregado), dividido em duas partes. A CBS vai substituir os impostos federais e o IBS, os tributos estadual e municipal.
Entre os pontos criticados por Salto estão o que ele considera:
um excessivo poder do Conselho Federativo que vai administrar a parcela da tributação que cabe a Estados e municípios;
as diversas exceções que permitirão a uma série de produtos e serviços serem menos taxados, levando a uma alíquota geral maior;
a transição para o IBS, que pode não garantir o fim da guerra fiscal entre os Estados, um dos objetivos originais da reforma;
e a dupla desoneração da cesta básica, com alíquota zero de impostos e um mecanismo de “cashback” ao mesmo tempo, sem clareza de como as duas coisas vão funcionar juntas.
Atualmente economista-chefe e sócio da gestora de investimentos Warren Rena, Salto foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (2022) e diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente do Senado (2016-2022), sendo uma das vozes mais atuantes no debate sobre as contas públicas no país.
Os pontos críticos da reforma, segundo Salto
Conselho Federativo
O primeiro ponto problemático, segundo o economista, é a previsão de criação de um Conselho Federativo – órgão que ficará responsável pelo recolhimento e distribuição do IBS, imposto que substituirá o ICMS estadual e o ISS municipal – com amplos poderes.
Pelo texto aprovado, o conselho poderá arrecadar, normatizar, regulamentar, ter iniciativa de lei complementar, partilhar recursos entre os entes federados e devolver créditos aos contribuintes.
“Tem aí um problema federativo de autonomia”, avalia Salto, fazendo eco às críticas de prefeitos e governadores, que foram um dos pontos sensíveis da tramitação da proposta na Câmara.
Além da perda de autonomia de Estados e municípios, o economista vê problema na questão da devolução dos créditos para os contribuintes intermediários, que são aqueles do meio das cadeias produtivas.
No modelo atual de tributação, os bens e serviços são tributados em todas as etapas da cadeia, e os tributos incidem uns sobre os outros. A ideia com a devolução de crédito seria acabar com esse “efeito cascata”, garantindo a chamada não-cumulatividade plena.
“Quando você diz que o conselho, por meio de conta central, vai garantir automaticamente essas devoluções, pode-se produzir um incentivo perverso, que é a geração de notas frias para produzir crédito que não deveria ser pago”, diz Salto.
“Isso só se resolve com fiscalização, por isso a arrecadação deveria ficar a cargo de cada ente federal”, defende o analista.
Exceções à alíquota geral
Um segundo problema, segundo Salto, são as diversas exceções à alíquota geral do IBS, ampliadas no texto final aprovado na Câmara na quinta-feira.
A lista de bens e serviços que terão alíquota reduzida (equivalente a 40% da alíquota padrão, ainda não definida), inclui os setores de: educação, saúde, instrumentos e equipamentos médicos, medicamentos e itens de saúde menstrual, serviços de transporte coletivo, produtos e insumos agropecuários, e atividades artísticas e culturais.
“Com todas as exceções aprovadas, a alíquota geral vai ter que ser maior [para que não haja perda de arrecadação]”, diz Salto.
“E uma lei complementar ainda vai detalhar tudo isso, o que pode aumentar o número de exceções. Tudo isso quebra a ideia de uniformidade, de não haver exceções.”
Guerra fiscal pode não acabar
Um terceiro problema citado por Salto é que um dos objetivos da reforma tributária seria acabar com a chamada “guerra fiscal” – prática adotada pelos Estados de oferecer desonerações de ICMS às empresas para atrair investimentos. Essa meta, segundo ele, pode não ser atingida.
Salto observa que os incentivos serão substituídos por um Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais, com aportes que somarão R$ 160 bilhões entre 2025 e 2032.
“O problema é que há um artigo na PEC, que garante que a União vai ter que cobrir no fundo todo e qualquer incentivo que se mostre convalidado nos termos da lei complementar. Então, no limite, se os R$ 200 bilhões de incentivos que existem hoje forem todos considerados legítimos, a União pode ter que colocar muito mais dinheiro”, diz Salto.
Isso representaria a manutenção de incentivos que distorcem a alocação econômica e produzem efeitos negativos sobre o crescimento econômico até 2032, considera o economista.
Transição para o IBS
Outro fator que pode impedir o fim da guerra fiscal é a janela de transição para a criação do IBS, avalia o economista-chefe da Warren Rena.
Pela proposta aprovada na Câmara, o IBS será instituído com alíquota de 0,1% em 2026. Até 2028, o novo imposto vai conviver com o ICMS e o ISS sem mudança de alíquotas nos tributos antigos.
A partir de 2029, os impostos antigos começam a ser reduzidos, em 10% ao ano, até 2032. Assim, segundo Salto, ao final de 2032, o ICMS e o ISS terão alíquotas equivalentes a 60% das atuais.
“Para que [a tributação] migre para o destino, nós temos que acreditar que não vai haver pressão nenhuma para que esses 60% de ICMS não continuem vigorando além de 2032. Ou seja, que da noite pro dia esse ICMS de 60% vá passar a zero”, diz Salto.
“Isso é um risco porque, ao manter uma alíquota grande para um imposto ruim que enseja benefícios fiscais – o que não é proibido pela PEC –, você pode ensejar a concessão de novos incentivos tributários. Aí há o risco de não termos a migração para o destino nem em uma década.”
Cesta básica
Por fim, Salto cita como um último ponto problemático da reforma tributária aprovada na Câmara a dupla desoneração da cesta básica.
Atualmente, os produtos da cesta básica são desonerados em 100% de PIS e Cofins, tributos sobre consumo cobrados pelo governo federal. A isenção é considerada mal focalizada, já que beneficia indistintamente ricos e pobres.
A ideia original da reforma tributária era reonerar a cesta básica e passar a devolver os impostos pagos à população de baixa renda, mecanismo chamado de “cashback”.
No entanto, mediante pressões no processo de tramitação, acabou sendo aprovada a manutenção da desoneração da cesta, cuja composição será fixada em lei complementar. Mas a possibilidade de devolução de impostos também foi mantida no texto.
Assim, a má focalização se mantém e ainda não há clareza de como vai funcionar a cumulatividade de desoneração e cashback.
“Eles fizeram isso por conta da pressão dos supermercados”, avalia Salto.
“Melhor seria o cashback focalizado, que dava para viabilizar porque há, por exemplo, a experiência em São Paulo da Nota Fiscal Paulista, que devolve imposto para as pessoas que pedem nota fiscal nos estabelecimentos. Outros Estados têm modelos similares, com programas de cidadania fiscal que viabilizam a devolução de uma parte do ICMS para as pessoas.”
Bola na área do Senado
Apesar dos diversos problemas apontados por Salto, ele avalia que nem tudo está perdido, já que ainda há a possibilidade de o Senado melhorar o texto, que deverá passar por votação na casa no segundo semestre.
“Espero que o Senado dê essa contribuição, porque a Câmara atropelou todo o processo tradicional de tramitação – não teve comissão, não teve o devido debate da nova proposta, o texto demorou para ser divulgado, tanto o preliminar, quanto os dois textos finais”, diz o economista.
Para Salto, o Senado deveria extinguir o Conselho Federativo e devolver a Estados e municípios a responsabilidade por suas respectivas arrecadações; revisitar a questão das exceções à alíquota geral; discutir a transição para o IBS, tornada demasiado longa pela Câmara, na avaliação do economista; e reanalisar a questão do fundo de compensação de benefícios.
“O Senado é a casa da federação e acho que os senadores, até por serem em número menor de parlamentares do que na Câmara, tendem a promover discussões mais aprofundadas e exercer esse papel de casa revisora “, afirma.
A virada de Tarcísio
Em seu périplo para fazer as críticas à reforma serem ouvidas, Salto chegou a se reunir com Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador de São Paulo e que foi um dos mais vocais contra o Conselho Federativo e a perda de autonomia dos Estados.
Tarcísio, no entanto, acabou recuando, mediante a concessão pelo relator de algumas mudanças na governança do Conselho Federativo.
A guinada do governador de São Paulo foi considerada decisiva para a aprovação da reforma antes do recesso parlamentar e levou a um desgaste entre Tarcísio e o ex-presidente Jair Bolsonaro, que se colocou contrário à reforma.
Questionado sobre a mudança de posição de Tarcísio, Salto afirma que o governador conseguiu mudanças relevantes na formatação do conselho.
Pelo texto aprovado, serão 27 representantes estaduais, 14 representantes eleitos pelos municípios e outros 13 eleitos pelos municípios, mas levando em conta o número de habitantes.
“Com isso, Estados populosos vão ter uma influência grande sobre o conselho”, observa Salto.
“Não estou dizendo que isso é suficiente – por mim, tinha que fulminar o Conselho Federativo. Agora, ele [Tarcísio] conquistou isso e tomou a decisão que achou que tinha que tomar.”
Debate entre economistas
O debate sobre a reforma tributária entre os economistas foi acalorado nas últimas semanas.
Do lado contrário à proposta, se colocaram Salto, e fiscalistas como Everardo Maciel, Fernando Resende, Jorge Rachid, José Roberto Afonso, Marcos Cintra e Selene Peres Nunes.
A ponta a favor reuniu um manifesto com mais de 60 nomes, incluindo Armínio Fraga, Affonso Celso Pastore, Maílson da Nobrega, Guido Mantega, Octaviano Canuto e Edmar Bacha.
“Acho que a democracia é assim mesmo”, diz Salto, quando questionado sobre a experiência de estar em lado oposto a economistas que ele admira.
“A divergência no campo técnico tem que ser exaltada e os pontos têm que ser colocados na mesa. Acho que é da vida, às vezes você fica de um lado, às vezes de outro – o importante é ter convicção técnica das coisas que se está defendendo, e isso eu tenho.”
Com passagens pelo Senado e governo paulista, Salto chegou a ser cotado para a equipe econômica do governo Lula, mas acabou não sendo escolhido e assumiu um cargo no mercado financeiro. Mas ele admite desejar voltar ao setor público.
“Gostei muito das passagens que tive no setor público. Foram oito anos em Brasília e um ano na Fazenda de São Paulo, que foi a experiência profissional mais gratificante que já tive”, afirma.
“Estou tendo uma boa experiência no mercado financeiro, era uma lacuna que eu tinha na minha carreira profissional, mas eu de fato gosto muito do setor público e, em algum momento, pretendo voltar.”
Fonte: BBC