Por Maria Helena Santos Silva Ferreira, Adriana Passaro e Humberto Almeida,

No dia 30/12/2022, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro publicou os Decretos nº 11.321/22 e 11.322/22, reduzindo em 50% as alíquotas do Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) e do PIS e da Cofins sobre as receitas financeiras. No intuito de reverter as reduções realizadas no apagar das luzes de 2022, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva revogou tais decretos, por meio de um novo Decreto, de nº 11.374/23, publicado no dia 2/1/2023.

Instaurou-se assim, uma grande discussão sobre produção ou não de efeitos dos Decretos nº 11.321/22 e 11.322/22, publicados em 30/12/22, com efeitos a partir de 1/1/23, bem como, se as revogações realizadas pelo Decreto nº 11.374/23, publicado no dia 2/1/23, e, com efeitos no mesmo dia, teria resultado na ausência de efeitos daqueles outros. Surgiram, consequentemente, questionamentos sobre se o Decreto nº 11.374/23 seria suficiente ou não para criar uma exceção à regra da aplicação do Princípio da Anterioridade, já que trouxe inequívoca majoração das alíquotas do AFRMM e do PIS e da Cofins sobre receitas financeiras.

Antes de tudo, faz-se necessário analisar o tema sob a ótica do Princípio da Legalidade, que impõe ao aplicador da lei o dever de observá-la e cumpri-la, possibilitando a efetivação da segurança jurídica e a concretização do Estado Democrático de Direito.

Dispõe o artigo 150, inciso III, “b”, da CR/88[1], que é vedada a exigência de tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que o instituiu ou aumentou. Este mesmo dispositivo legal, em seu inc. III, “c”, da CR/88 [2], traz em seu texto o Princípio da Anterioridade Nonagesimal, que veda à União, wstados, municípios e ao Distrito Federal a cobrança de tributo antes de decorridos noventa dias da data da publicação da lei que o instituiu ou o majorou. Da mesma forma, estabeleceu o artigo 195, § 6º, da CR/88 [3], que a instituição ou a majoração das contribuições sociais deve ocorrer após noventa dias da data da lei que estabeleceu a referida medida, não se aplicando a regra do artigo 150, inciso III, “b”, da CR/88.

A anterioridade da lei tributária é uma limitação ao poder de tributar que garante aos contribuintes um prazo de segurança para se adaptarem à nova exigência fiscal. No caso em análise, todos os tributos que tiveram suas alíquotas restabelecidas pelo Decreto nº 11.374/23 acabaram por sofrer majoração, e, por isso, com fundamento nas disposições do artigo 150, inciso III, “b” e “c”, da CR/88 e do artigo 195, § 6º, da CR/88, deveriam ter observado, necessariamente, o Princípio da Anterioridade.

Conforme ensina Tathiane Piscitelli [4], o princípio da anterioridade decorre da segurança jurídica, pois confere ao contribuinte duas certezas: “uma, a de que a norma tributária não terá vigência imediata, possibilitando a previsibilidade das ações do Fisco; outra, relativa ao fato de que os efeitos da norma que institua ou aumente tributos serão, tão somente, prospectivos, deixando intactos os atos ocorridos antes de sua vigência”.

Em que pese o artigo 2º, §3º, da Lindb [5], seja uma exceção à regra, ao permitir, desde que haja previsão expressa na lei, a restauração de lei revogada, não se pode desconsiderar os efeitos produzidos pelas legislações revogadas, ainda que tenham vigorado por um dia.

Nesse sentido, para a restauração de lei revogada exige-se que tenha previsão expressa na lei, não havendo na legislação brasileira a figura da repristinação automática. Desse modo, o Decreto nº 11.374/23, deveria ter expressamente determinado a repristinação do artigo 6º, da Lei nº 10.893/04, que estabelece as alíquotas incidentes sobre o AFRMM, assim como foi expressamente determinado para o Decreto nº 8.426/15, que dispõe sobre as alíquotas do PIS e da Cofins incidentes sobre receitas financeiras, bem como para o Decreto nº 10.615/21, que regulamenta o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (Padis).

Assim, não havendo nova lei que revigorou o artigo 6º, da Lei nº 10.893/04, essa norma que foi revogada por lei posterior, nos termos do artigo 2º, §1º, da Lindb [6], deve ser considerada como inexistente, tendo em vista que o fato de a norma revogadora deixar de existir não é o suficiente para convalescer a norma revogada. Para tanto, faz-se necessário determinação expressa em lei, assim como foi realizado para os Decretos nº 8.426/15 e 10.615/21, por meio do Decreto nº 11.374/23.

Sobre a repristinação, a doutrinadora Maria Helena Diniz [7] ensina que “deixando de existir a norma revogadora, não se terá o convalescimento da revogada. A revogação põe termo à lei anterior, que, pelo término da vigência da norma que a revogou, não renascerá. Como se vê, a lei revocatória não voltará ipso facto ao seu antigo vigor, a não ser que haja firme propósito de sua restauração, mediante declaração expressa da lei nova que a restabeleça, restaurando-a ex nunc, sendo denominada por isso repristinatória. Faltando menção expressa, a lei restauradora ou repristinatória é lei nova que adota o conteúdo da norma primeiramente revogada. Logo, sem que haja outra lei que, explicitamente, a revigore, será a norma revogada tida como inexistente. Daí, se a norma revogadora deixar de existir, a revogada não se convalesce, a não ser que contenha dispositivo dizendo que a lei primeiramente revogada passará a ter vigência. Todavia, aquela lei revogada não ressuscitará, pois a norma que a restabelece, não a faz reviver, por ser uma nova lei, cujo teor é idêntico ao daquela. A lei restauradora nada mais é do que uma nova norma com conteúdo igual ao da lei anterior revogada”.

O AFRMM é uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico-CIDE e incide nos descarregamentos de frete marítimo em portos brasileiros. Caracteriza-se como um tributo setorial por abranger ramo de atividade econômica específico [8] e sua receita é destinada ao apoio ao desenvolvimento da Marinha Mercante e à indústria de construção naval, variando sua alíquota de acordo com o meio e lugar de navegação.

Em razão de sua natureza, caso houvesse ocorrido a repristinação do artigo 6º, da Lei nº 10.893/04, aplicar-se-ia a regra geral aplicável aos tributos, estabelecida no artigo 150, inciso III, “b”, da CR/88, que trata do Princípio da Anterioridade do Exercício Financeiro, podendo-se concluir, portanto, que a majoração do AFRMM somente poderia ser realizada após o fim do exercício financeiro (31/12/23) em que foi publicado o referido decreto, ou seja, a partir do dia 1/1/2024, já que os efeitos provocados pelo Decreto nº 11.374/23, publicado no dia 2/1/23, iniciaram-se nesse mesmo dia. Contudo, não tendo o Decreto nº 11.374/23 repristinado o texto do artigo 6º, da Lei nº 10.893/04, essa norma tornou-se inexistente, não podendo haver a cobrança do AFRMM, uma vez que não será possível determinar o quantum objeto da prestação tributária.

No que se refere ao Decreto nº 11.322/22, que provocou a redução em cinquenta por cento das alíquotas do PIS e da Cofins sobre receitas financeiras, o Decreto nº 11.374/23, ao restabelecer as alíquotas originais e impor aos contribuintes majoração dos tributos, deveria ter respeitado o princípio da anterioridade, postergando a sua eficácia e mantendo a vigência das disposições legais anteriores até que ocorra o cumprimento dos referidos prazos, já que esses tributos não se encontram na lista de tributos de exceção à anterioridade.

O PIS e a Cofins sobre receitas financeiras, enquanto contribuições sociais destinadas ao financiamento da seguridade social, devem obediência a regra do Princípio da Anterioridade Nonagesimal, aplicando-lhe, além do artigo 150, inc. III, “c”, da CR/88, o artigo 195, § 6º, da CF/88, que protege o contribuinte não apenas da instituição ou aumento dessas exações, mas, de qualquer modificação no regime que se constate onerosa para o contribuinte [9]. Especificamente sobre esses tributos, o Supremo Tribunal Federal (STF) já se pronunciou no julgado do ADI 5.277/DF [10], publicado no dia 25/3/2021, apontando a necessidade da sua majoração submeter-se a noventena, de sorte que a majoração dos referidos tributos pelo Decreto nº 11.374/23, deve se iniciar a partir do dia 3/4/2023, após decorrido o prazo de noventa dias da data da sua publicação.

Assim, diante da ausência de repristinação do artigo 6º, da Lei nº 10.893/04, pelo Decreto nº 11.374/23, deixou de ser devido o recolhimento do AFRMM. Por sua vez, no que se refere ao PIS e à Cofins sobre receitas financeiras, as alíquotas majoradas pelo Decreto nº 11.374/23 somente poderão ser aplicadas a partir de 3/4/2023, em razão da necessária observância à anterioridade nonagesimal, de modo que as alíquotas estabelecidas pelo Decreto nº 11.322/22 permanecem vigentes, em que pese sua revogação.

Diante do exposto, os contribuintes que pagarem indevidamente o AFRMM ou o PIS e a Cofins sobre receitas financeiras, com base nas alíquotas majoradas pelo Decreto nº 11.374/23, poderão resguardar seu direito ao recolhimento nos termos da lei vigente, por meio de medida judicial, pleiteando a repetição do indébito do valor pago indevidamente nos respectivos períodos. Além disso, poderão requerer o não recolhimento destes impostos com base nas novas alíquotas, no caso do PIS e da Cofins sobre receitas financeiras, e, em razão de inexistência de obrigatoriedade, por ausência de lei fixando o quantum objeto da prestação tributária, no caso do AFRMM.

[1] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(…)

III – cobrar tributos:

(…)

  1. b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;

[2] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(…)

III – cobrar tributos:

(…)

  1. c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;

[3] Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

(…)

  • 6º As contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no art. 150, III, “b”.

[4] Piscitelli, Tathiane dos Santos. Argumentos pelas consequências no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2011. Pag. 207/207.

[5] Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

(…)

  • 3oSalvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.

[6] Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.§ § 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

(…)

[7] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, Editora Saraiva, São Paulo, 1997, p.83.

[8] Costa, Regina Helena. Curso de Direito Tributário: Constituição e o Código Tributário Nacional. 12ª Edição. São Paulo : SaraivaJur, 2022. Pag. 173/173.

[9] Costa, Regina Helena. Curso de Direito Tributário: Constituição e o Código Tributário Nacional. 12ª Edição. São Paulo : SaraivaJur, 2022, pag. 103/103.

[10] ADI 5277/DF, disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4739288

Maria Helena Santos Silva Ferreira advogada especialista do /asbz, mestranda em Direito, Justiça Tributária e Segurança Jurídica pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-graduada em Direito Tributário e em Direito Internacional.

Adriana Passaro é sócia conselheira do /asbz, advogada especialista na área tributária, pós-graduação em ICMS pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet-SP) e mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Humberto Almeida é advogado especialista do /abz em Direito Tributário.